As "coisinhas" que deixamos de lado
- Francine Porfirio
- 1 de jun.
- 3 min de leitura

Ana planejou o dia. Ela sabe os seus deveres, afinal, é uma mulher responsável e (talvez) um pouquinho perfeccionista. Sua agenda é apenas uma formalidade onde registra as tarefas, porque (convenhamos) ela não precisa realmente consultá-la – sem muito esforço, Ana lembra o que precisa fazer. Será por isso que ela mal conclui uma tarefa e já inicia outra, quase que automaticamente? Seja como for, é claro que ela se orgulha do que faz. Quem não se orgulharia? A questão é que Ana se permite se orgulhar apenas ao fim de um dia inteiro vivido a favor dos deveres cumpridos. Não faz sentido orgulhar-se de cada tarefa feita, isso seria uma ilusão... De que adianta pausar para celebrar quando se tem outra responsabilidade à sua espera? Para ela, é mais satisfatório encerrar a noite relembrando que "deu conta de tudo" ou que "faltou só uma coisinha ou outra que nem era tão importante". Por "uma coisinha ou outra", Ana se refere àquilo que pode sempre ser deixado para o dia seguinte:
Aquela refeição feita com calma, sem o celular à mão.
Aquela resposta à mensagem de uma amiga.
Aquela pausa de qualidade entre tarefas.
Aqueles 15 minutos de atividade física.
Aquela consulta a ser agendada.
Ana sabe que as "coisinhas" que deixa de cumprir geralmente são aquelas que a beneficiam, mas não necessariamente beneficiam outras pessoas. Ela também reconhece que, se essas "coisinhas" fossem incluídas na rotina, talvez sentisse menos cansaço e irritação. Às vezes acha difícil olhar para a própria rotina e sentir falta do que ainda não pôde viver. Antes de dormir, ela rola o feed de suas redes sociais e vê as receitas saudáveis que quer incluir no dia a dia; os lugares que ainda quer visitar; as escolhas fitness que ela deseja fazer; e até os lazeres que ela gostaria de ter. E ao adormecer, um mesmo pensamento embala seu sono: "Amanhã eu começo".
Certo dia, quando Ana se sentia especialmente mal-humorada, a campainha soou. Ana trabalha em casa, mas ainda não conseguiu ter uma rotina que a faça se sentir realmente privilegiada por isso. Naquela tarde, imprevistos atrapalharam suas tarefas e ela tentava se apressar para concluir o dia com o seu momento de "orgulho autopermitido". A campainha, bem, não estava em seus planos.
Abriu a porta para a vizinha do andar de cima – uma senhora de semblante amigável. Uma peça de roupa caíra do varal dela sobre o varal de Ana. É claro que Ana foi buscar a peça para devolvê-la, mas a interação não terminou ali. A vizinha elogiou o aparador de Ana, dizendo que combinava com a única parede pintada de um suave azul. Ana sorriu e agradeceu, sentindo-se repentinamente tímida. Receber elogios sem fazer algo para isso a deixava um pouco constrangida, quase como se não merecesse. A vizinha disse que era costureira, e caso Ana precisasse poderia procurá-la a qualquer momento. Ana imediatamente pensou em algumas peças que tinha no guarda-roupa precisando de ajustes há meses (uma das "coisinhas" que sempre deixava para depois), e agradeceu.
Quando Ana fechou a porta, nem cinco minutos haviam se passado, mas seu humor parecia outro. Ela olhou para o aparador e lembrou que o havia escolhido pensando em decorá-lo com uma planta — um pequeno desejo que também deixou para uma ocasião mais oportuna. Ficou se perguntando, repentinamente, por que tanto tempo depois ainda não havia feito isso. Ela suspirou e voltou ao trabalho.
A história de Ana é inspirada em um momento que vivi. Em meio a várias atividades, tive uma breve interação que ressoou em mim de um modo diferente. Percebi que, até ali, estava no automatismo que os deveres nos impõem – do qual apenas a consciência nos liberta.
Ana é um pouco de mim, e certamente um pouco de muitas pessoas que são muito esforçadas, que trabalham duro para sustentarem sua rotina árdua, mas ainda sentem que lhes falta algo no caminho. Por muito tempo pensei que me faltasse mais disciplina, mais compromisso, mais esforço e (claro) mais horas na agenda para incluir as "coisinhas" que eu habitualmente deixava de lado. Foi difícil, mas muito importante reconhecer que não se tratava disso.
Manter-se constantemente atento aos deveres, como se após uma atividade apenas nos restasse outra, rouba a sensibilidade necessária para se atribuir sentido às experiências enquanto são vividas. A vida acontece no processo, e não nos resultados.
Que tal se permitir aprender a viver a sua história de um modo mais presente? A psicoterapia é o meio pelo qual esta aprendizagem acontece.

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